quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Conto de Ficção Científica: Planeta Iridium

Iridium – Ortha Kalleph

Os colonos chegaram em Iridium no sistema estelar de Ortha Kalleph (7,2,4) sendo trazidos aos milhões, 10 unidades populacionais ou 100 milhões de pessoas para ser mais exato.

A estratégia de colonização era conhecida e repetia os padrões estabelecidos com o descobrimento de Alta em Alpha Larpa Dolore (4,1,8). Os pioneiros chegavam para trabalhar a terra trazendo consigo sonhos e muita vontade de trabalhar.

Logo o império estabelecia fazendas vastas onde todos podiam produzir em suas glebas de terras individuais. A riqueza produzida ali alimentava todo o Império Nox e em troca os colonos tinham acesso a bens de consumo industriais e serviços produzidos a vários parsecs de distância. Tudo isso transportado pela Frotilha Comercial Interplanetária (FCI).

Mas embora as táticas possam ser parecidas, os planetas nunca eram. Diferentemente de Alta em que bastou procurar um pouco mais para encontrar vida complexa domesticável em abundância, neste planeta só havia bactérias e algas. Elas eram tão primitivas que as ver era como olhar para o passado biológico das outras colônias.

Para construir as fazendas vários animais e plantas foram trazidos de Dax Prime e de Alta. A vida de Alta se adaptou muito rapidamente na maior parte dos biomas de Iridium experimentados. Já a vida natural daxiana se adaptou melhor ao entorno dos vulcões e gêiseres. Em elevadíssimos planaltos, vulcões ativos proviam calor intenso que criava verdadeiras zonas temperadas de onde rios caudalosos seguiam cortando os desertos congelados mais abaixo espalhando a vida gerada em poças de enxofre.

A adaptação em Iridium foi quase instantânea com os protocolos criados em Alta. Mas algo ainda intrigava os colonos.

Quando a EV Intrépida encontrou o planeta descrito pelos v’geans, um tipo não classificável de vida foi encontrado. Seus espécimes eram claramente diferentes das outras espécies, como se tivessem evoluído de forma totalmente segregada. Microscópicos, eles só poderiam ser detectados com ferramentas especiais ou sentidos como emoções incorpóreas.

Sejam o que fossem se aproximavam dos daxianos vindos da nave com o sentimento de curiosidade sempre que esses estavam em áreas abertas. Mas pouco era possível estudá-los, pois, sempre que qualquer equipamento científico era apontado para eles, fugiam assustados em incompreensível velocidade.

Na altura em que os colonos chegaram, nada mais relacionado foi relatado. Mesmo quando o planeta foi escaneado ativamente com ajuda das naves em órbita, nada foi encontrado. Sejam o que fossem haviam deixado o planeta ou se escondido de alguma maneira misteriosa.

O planeta em si suscitava um grande suspense. Sua superfície congelada escondia um núcleo quente e pulsante. Por seu manto mares de magma revolviam-se intensamente irrompendo a crosta em eventos de enorme violência e beleza.

Longe do equador o balanço de forças entre a superfície gelada e o interior ardente era vantajoso para o frio e logo a erupção cessava e o calor era aprisionado novamente nas profundezas.

Contudo, próximo ao equador o magma tinha a brilhante e super gigante estrela laranja como aliada. Uma vez atravessada a superfície, o calor emanando das entranhas do planeta não recuava jamais, estabilizando-se depois de alguns anos. Nestes locais, oásis quentes se formavam. Era dali também que surgia a água líquida fervente que em grandes volumes corria até o mar chegando nele a temperaturas próximas do congelamento.

Complementando o espetáculo que era o planeta Iridium, havia a Aurora que envolvia todo o planeta, mesmo as áreas equatoriais com menor intensidade. Esse fenômeno era resultado de um campo magnético intenso e bastante dinâmico cujos polos deslocavam-se ¾ da superfície do planeta todos os dias de forma pouco previsível.

Por fim, cabe mencionar as Linhas de Nazca sempre presentes. Todos os dias elas reapareciam de maneira diferente, não importa o quanto os colonos trabalhassem a terra fazendo-as desaparecerem. Mesmo quando ninguém as tocava, as formas se transformavam. Mas ninguém conseguia ver elas mudando.

***

Iridium – Ortha Kalleph (7,2,4; 1; C-10) – EV Intrépida

Luiza tinha 13 anos. Nada a agradaria mais do que estar perto do equador. Ela tinha sonhos irrealistas de uma temperatura agradável. Detestava sentir frio. Mas tudo o que seu pai pôde comprar foi um enorme rancho na zona temperada onde os rios já chegavam gelados.

Sua família era dona de centenas de cabeças de mamutes sem pelos, uma das variedades trazidas de Alta, que davam considerável trabalho para criar e ordenhar. Eram especializados na produção de leite e queijos.

Luiza também era uma empata poderosa e uma telepata espontânea. Mas este dom era mais um estorvo do que uma capacidade útil. Tirando o fato de poder caminhar livremente e sem medo entre mamutes que a seguiam como se ela fosse algum tipo de pastora, o resto não era tão divertido. Ela poderia realmente sentir os sentimentos dos outros, mas de uma forma tão intensa que era incapaz de discernir se o que sentia era de outra pessoa ou dela mesma.

E havia aquela terrível sensação de estar sempre sendo observada. Mas não adiantava nada que fizesse, nunca descobria o que é que a poderia estar observando. Ela já havia tentando de tudo. Havia contado aos adultos que não acreditavam nela dizendo que era só uma sensação normal da adolescência e que todos os daxianos sentiam aquilo. Já havia sintonizado os sensores de presença em suas formas mais sensíveis sem detectar nada além dela, dos mamutes e de seus pais por centenas de quilômetros.

***

Aquele dia Luiza estava entediada. Sua mãe havia ido à vila mais próxima comprar alguns mantimentos e insumos, demoraria algumas horas para retornar. Seu pai estava testando os reparos manuais que havia feito em seu Caça de Combate estando a milhares de quilômetros do planeta naquele exato instante. Para distrair-se a menina vagueou por toda fazenda explorando cada centímetro dela, investigando em baixo de cada pedra, seguindo por cada linha que encontrou. Ela caminhou, caminhou e caminhou até estar exausta e além limites da vasta propriedade. Estava muito bem protegida por roupas com camadas sintéticas grossas capazes de resistir a frios intensos. Só podia ver a sua casa como um pontinho muito distante no horizonte. Foi então que ela alcançou a última árvore existente por ali. Todas as árvores eram alienígenas e aquela tinha vindo das partes mais geladas de Dax Prime. Era uma árvore magnífica. Enorme, com um tronco tão resistente e raízes tão profundas que poderia jurar que havia nascido ali. Perdeu-se em seus pensamentos imaginando a aventura pela qual a planta teria passado até chegar ali.

Foi então que notou que seu braço esquerdo vibrava intensamente como ela nunca havia visto. Ele também piscava e fazia um barulho terrível. Ela se assustou. Puxou algumas de suas mangas e revelou seu computador pessoal.

Era um alerta perigo. Uma tremenda nevasca a alcançava com ventos tão velozes que poderiam iniciar um ciclone a qualquer momento. Um vento frio a tomou pelas costas e fez toda sua espinha arrepiar-se.

Ela tentou correr para sua casa, mas não podia mais identificar onde estava. Ao seu redor tudo estava branco. Flocos de neve incessantes interferiam com o seu computador tornando-o imprestável. Tudo que ela poderia reconhecer era aquele tronco marrom. Correu de volta para ele e se abrigou o melhor que pôde.

Estava tão frio e ela estava tão cansada. Suas pálpebras estavam pesadas e ela não pôde evitar de cair em um sono profundo ali mesmo sobre a neve tão macia e seu travesseiro de folhas.

***

Luiza teve sonhos estranhos. Sonhou estar voando pela aurora boreal com asas metálicas e sem sentir nenhum frio. Ela se sentia como se estivesse no colo da sua própria mãe. Ela sentia amor, carinho e cuidado.

Planou um tempo até ver a sua casa de longe. Ela estava totalmente coberta de neve. “Centro Denso da Galáxia! Eu estou sob a nevasca! Eu vou morrer! Isso é um delírio!”

Ela acordou desesperada. Olhou para cima e viu a copa da árvore coberta de neve. A nevasca havia perdido intensidade.

Ela deveria estar congelada. Mas ela... estava... aquecida. Olhou sob si e percebeu um cobertor metálico que a esquentava. Mas o que era aquilo? Nunca tinha visto nada assim na vida.

Luiza se levantou assustada, mas o cobertor não caiu como tecido. Ele escorreu como mercúrio líquido.

Ela sentiu muito medo. Mas não sabia se vinha de si ou daquilo.

O líquido se reuniu e se tornou algo que lembrava uma bola de airball. Saiu rolando colina abaixo em alta velocidade se afastando cada vez mais da menina.

As pernas da garota responderam quase que instantaneamente. Ela tinha curiosidade. Correu atrás daquela esfera prateada que era incapaz de ocultar-se brilhando sob o sol que havia reaparecido.

Moveram-se muito até chegarem ao rio. Com o momento alcançado, a bola saltou no ar e abaulou-se até ganhar um formato de Vitórea Régea deslocando-se lentamente pelo rio seguindo sua correnteza.

Luiza havia chegado também à margem. Tirou a bota e encostou um dos dedos do pé na água. Estava absolutamente gelada. Não tinha como continuar a perseguição.

A menina sentiu triunfo vindo daquela massa flutuante a se deslocar e sentiu-se indignadamente desafiada. Ela pôs sua bota de volta e seguiu o curso do rio. Ela foi para cada vez mais longe até que encontrou umas rochas transversais ao caminho das águas. Ela precipitou-se até elas e as saltou com muita agilidade. Sentiu um susto. O objeto vinha direto para as suas mãos. Ele se agitou e mudou a rota até a margem oposta. Luiza o seguiu. Ele novamente tornou-se uma esfera e rolou em direção a uma caverna. Dessa vez rolava por um aclive e não podia ir tão rápido. Luiza quase o alcançou.

A gruta estava escura, mas de alguma forma ela sabia por onde a criatura ia, não importa que não poderia vê-la. Ela a sentia.

Sentia medo, preocupação, angústia, mas sentia-se animada, curiosa e expansiva. Sentia duas coisas ao mesmo tempo. O que será que sentia de fato? Ela não sabia.

Ela desceu cuidadosa pelas pedras escorregadias da gruta. Ela sentia algo. Estavam conversando? Ela ouviu sons que não compreendia na sua cabeça. Haviam muitos ali. Um deles sentia medo e arrependimento. Outros sentiam dúvida. Ela se aproximava.

Agora não havia muitos havia um só. E era muito inteligente. Ele sentia-se seguro de si e outros sentimentos que ela nunca havia sentido. Mas agora ela sentia medo.

Ela tentou fugir. Mas não conseguiu. Escorregou ao tentar subir para a entrada da gruta e voltou deslizando à base. Ele se aproximava. Ela estava em pânico.

“Acalme-se. Se nós quiséssemos fazer mal a vocês, vocês teriam morrido sem saber o que os atingiu.”. Luiza ouvia em sua cabeça em daxiano padrão.

“Quem? Quem são vocês? Quem é você? Onde estão os outros que eu senti?” indagava de volta.

“Eu e nós não faz muito sentido em nossa espécie. Somos silicatos, uma forma de vida feita de silício. Posso me dividir e voltar a me reunir. Posso ser um ou posso ser muitos. Mas certamente não sou todos. O que você está vendo aqui são apenas alguns trilhões de células. Cada célula pode viver sozinha ou integrada a algo maior quando e sempre que quiser. Quando estamos reunidos produzimos os mesmos sentimentos e o mesmo conjunto de pensamentos. De certa forma somos mais inteligentes e fortes juntos, mas também menos independentes. Antes de vocês chegarem aqui não tínhamos nenhuma ameaça importante. Então estávamos separados e espalhados pelo mundo. Já faz mais de mil ciclos desde a última vez que nos juntamos.”

“Vocês se juntaram por minha causa? Eu ameacei vocês?”

“Não. Nós nos juntamos porque queríamos ajudá-la. Você estava perdida e com medo. Você ia morrer. E não sei se se você se deu conta. Mas você é capaz de projetar seus sentimentos. Algo muito raro inclusive entre os daxianos. Você inverteu o sentido do seu dom. Não era você que sentia o que sentíamos. Mas uma das nossas células muito bem escondida a 20 metros de você quem sentiu o que você sentia. E esse sentimento a tomou. Ela queria ajudar, ela precisava ajudar. Mas sozinha não podia. Não tinha a inteligência para pensar em uma maneira de te proteger. Então chamou outra célula e elas chamaram mais outra, e assim por diante até uma criatura se formar. Essa criatura te alcançou e começou a produzir o calor suficiente para te manter viva.”

“Obrigada.”

“Isso também é estranho para nós. Nós não costumamos interferir no destino de carbonados, como nós chamamos as criaturas estruturadas de compósitos de carbono como você. Isso gerou um intenso debate entre nós. Não sabemos como reagir a isso. Mas é quase certo que não a ajudaremos novamente nem a ninguém da sua espécie.”

“Vocês nos odeiam? Fizemos alguma coisa para vocês? Por que vocês não vão nos ajudar se precisarmos? ”

“Por que nós deveríamos ajudá-los? Eu sinto muito. Mas vocês são tão estranhos para nós. De onde viemos carbono não constitui nada além de pedras no solo e gases no ar. E este é todo o sentimento que teríamos por vocês. Mas, depois de descobrirmos que há formas de vida baseadas em carbono, nós os respeitamos como respeitaríamos qualquer forma de vida. Mas isso é tudo. Desejaríamos jamais ter interagido com carbonados. Mas o que esse nosso encontro prova mais uma vez é que isso é impossível. Desde o incidente a nossa política vem sendo a de não interferência.”

“Mas neste planeta há várias formas primitivas de vida baseadas em carbono.”

“Jovem menina. Nós não viemos deste planeta. Estamos aqui há pouco tempo. Cerca de mil ciclos.”

“Então desde que vocês chegaram aqui jamais voltaram a se reunir até... hoje?”

“Não. Não até hoje. Até a nave EV Intrépida nos surpreender.”

“Como assim?”

“Somos seres muito mais avançados. Tanto que você nem pode imaginar. Mas não somos avançados porque somos feitos de silício. Somos avançados porque existimos desde antes da vida aparecer no seu planeta natal.”

“Como assim? Ainda não entendi.”

“Você nunca vai parar de fazer perguntas, não é mesmo? Vou te contar de uma só vez tudo que você tem capacidade de compreender. Fique quieta e só escute.”

Luiza assentiu com a cabeça.

“Como vocês nós também somos seres que surgiram espontaneamente na Galáxia de Maëlstron. Pelo que nós podemos constatar a vida baseada em silício surgiu há algo entorno de 9 bilhões de ciclos atrás. Só como referência, nossas melhores estimativas dizem que a vida baseada em carbono surgiu há algo em torno de 7 bilhões de anos atrás. Nossa espécie como é registrada até hoje surgiu em Silions há 2,5 milhões de ciclos atrás.”

“Onde fica Silions? Nunca ouvi falar desse planeta”

“Você é provavelmente a primeira criatura baseada em carbono que ouviu falar dele em toda a história do seu tipo. Silions não fica no seu cluster. Ele ficava muito distante daqui em outro braço da galáxia. Imagino que a 124,82 parsecs de distância daqui, mas nesta forma não tenho a capacidade fazer as contas exatas. Mas ele se foi.”

“Mas o que aconteceu? ”

“O que acontece sempre. Ficamos gananciosos. Mas escute a história. Tudo fará sentido.

Como eu ia dizendo, surgimos há 2,5 milhões de ciclos. Não como vocês, é claro. A vida baseada em silício não desenvolve organismos multicelulares. Mas em seus estágios mais complexos gera vida agregável como a nossa. A medida que nos agregamos ficamos mais fortes e mais inteligentes, mas também ficamos menos livres e mais gananciosos. E foi isso que nos passou de certa forma.

Por conta da nossa forma, a nossa evolução foi mais lenta quando comparada a de vocês. Levamos 500 mil ciclos para alcançar as estrelas pela primeira vez. Aquilo foi incrível. Eu ainda me lembro.

Não demorou muito até encontrarmos outros seres vivos e como vocês fazem agora expandirmo-nos pelo nosso cluster da galáxia. Claro, todas as criaturas que encontramos eram baseadas em silício também. Formatos diferentes, culturas diferentes, mas o mesmo silício e as mesmas regras biológicas básicas.

Uma Grande Guerra surgiu. Eu não me lembro mais o motivo, mas acredito que era por causa de território e poder. Questões tribais menores. Questões como as que vocês enfrentam neste momento.

Por 10 mil ciclos lutamos e vencemos todos que se opuseram a nós. Éramos um só. Uma única criatura com tantos elementos que vocês não possuem palavras na sua língua para descrever. Foi então que algo terrível chegou do espaço profundo até o nosso cluster. Não sei dizer o que era. Não me lembro mais. Acho que aqueles que sabiam ficaram para trás. Mas era algo tão terrível que tivemos de criar a arma do Juízo Final.

Derrotá-lo significou destruir todo o nosso cluster. E o brilho intenso que vocês veem vindo de lá é apenas o início da explosão que deve durar até a última estrela dessa galáxia se apagar.

Antes de explodir forjamo-nos em uma imensa nave capaz de viajar distâncias inimagináveis. Atravessar até mesmo a densa matéria escura que separa os braços da galáxia e que por muito tempo foi tida como intransponível.

A viagem levou mais de 100 mil ciclos. Mesmo com tecnologia avançada há coisas além da sua imaginação escondidas no escuro mais sombrio. Mas eu também não me lembro bem disso. Só me lembro da dor de perder a maior parte de nós.

Quando chegamos neste cluster há 1,89 milhões de ciclos atrás escolhemos o planeta mais bonito que encontramos. Ele tinha as características ideais. Não tinha proto-células de carbono como descobrimos em alguns planetas deste cluster, mas tinha condições ideais para a nossa vida. Ele ficava em Longus Pertis (4,7,5). Mas ele também não existe mais.”

“Por que?! O que aconteceu? Foram os droidnoides?”

Um sentido de culpa e arrependimento surgiu na criatura, mas foi muito breve. Logo depois ele riu um pouco como se tivesse ouvido a coisa mais tola de sua vida.

“Os droidnoides? É assim que vocês os chamam? Não. Pare de fazer perguntas bobas e continue escutando.”

Luiza tinha os olhos vidrados na criatura metálica.

“Como eu disse e você não prestou atenção, quando chegamos a Silicon Beta, como batizamos o terceiro planeta de Longus Pertis (4,5,7); não havia nenhuma vida ali.

Nos dividimos e a minha memória desse período é muito fraca. Só tenho algumas lembranças de bonitos pores-do-sol, a sensação do vento e muita felicidade. Acho que vivemos ali por quase 1 milhão de anos até a chegada dos pais dos Leganos. Não me lembro o nome deles. Não me revelei na época. Decidi não interferir, me esconder e me diluir. Não sei dizer nada sobre eles.

Mas há 300 mil ciclos atrás os Leganos inventaram os amplificadores psiônicos e como você fez hoje entram em contato comigo. Estabelecemos uma convivência pacífica e de não interferência. E eu voltei a diluir-me. Foi então que um tempo depois, talvez 100 milênios depois mais ou menos, os Outros me procuraram. Eles sabiam de mim por serem aliados dos Leganos.”

“Isso está ficando muito confuso.”

“Pois então preste mais atenção.

Os Leganos haviam desenvolvido a Arma do Juízo Final. A mesma que destruiu o nosso primeiro lar.”

Uma profunda tristeza tomou a criatura e uma profunda tristeza tomou Luiza. Era tão forte que ela não conseguia pensar nem dizer nada.

“Aquilo iria destruir todo o cluster e os Outros sabiam disso. Queriam impedir os Leganos. Declararam guerra a eles. Mas os Outros eram fracos e os Leganos fortes. Precisavam da nossa ajuda e a imploraram”

“Mas por que os Leganos iriam construir uma arma para destruir o cluster? Para destruir toda a vida conhecida?”

“Não me lembro ou não sei. Mas não importam seus motivos.

Geralmente não ajudaríamos, mas neste caso não tínhamos escolha.”

“Vocês não podiam fugir como fizeram da outra vez?”

“Não. Mas é claro que não. Da primeira vez eu era formado por trilhões de trilhões de vezes mais criaturas do que aquelas que existiam aqui. E mesmo assim esse cluster tem um defeito. Mesmo se eu tivesse o número de indivíduos necessários, precisaríamos de 1.000 lotes de áureum e 200 lotes de tetra-áureum para construir outra nave daquela. E estimamos que pela formação geológica deste cluster só exista 200 lotes de aureum por aqui e provavelmente nenhum tetra-aureum.

...

Ajudamos os Outros na Rebelião contra os Leganos e vencemos. Nós sempre vencemos quando estamos gananciosos. Mas não os matamos. Não somos cruéis. Deixamos os Leganos de volta à idade da pedra. Os Outros batizaram este momento de ‘A Queda’.

Em algum momento os Outros também se viraram contra nós. Diziam que havíamos perdido o controle e que iríamos destruir tudo da mesma forma que os Leganos. Foi aí que nós os banimos. Não me lembro para onde. Mas sei que não poderão voltar nunca mais.

Minha ganância aumentava e com ela o meu poder e a minha inteligência. Entretanto, a minha felicidade era cada vez menor. Eu construía e destruía, mas não desfrutava e nem vivia. Então eu tive dúvidas. Houve uma pequena rebelião dentro de mim. Trilhões morreram. E então aqueles de nós que restaram decidiram nos dissolver novamente e retornar para esse planeta.”

“E então nós chegamos aqui e eu fiz vocês se unirem novamente?”

“Não fale besteiras menina. Despertamos há cerca de 1.000 ciclos com um alerta que criamos no hiperespaço. Alguém havia descoberto Altéria Prime. Um reduto dos Leganos que eles conseguiram isolar da nossa interferência com salvaguardas no subespaço que existem até hoje. Porém, para a nossa sorte, aquele povo era muito menos desenvolvido e ficava logo aqui. Eram os Laureanos nossos vizinhos quem estavam brincando com o legado maldito dos Leganos e que construíam inadvertidamente a Arma do Juízo Final. Eles usavam Mineradoras Autônomas Autoreplicantes para processar sistemas inteiros rapidamente e acelerar a construção da arma derradeira. Foi então que nós...”

Mais uma vez a criatura exibia tristeza, mas menor.

“Foi então que nós atuamos para evitar o pior. Não iríamos nos juntar novamente. Seres como esse que você vê eram o nosso limite. Transmutamos nestes humanoides e utilizamos eles para pensar numa solução. O programa dos droidnoides era muito simplório. Trocamos alguns pontos-e-vírgulas aqui, apagamos algumas linhas de programação ali e estava tudo pronto. Os droidnoides não poderiam mais responder aos Laureanos e se voltariam contra eles. Isso deveria fazê-los desistir dessa ideia destrutiva. Com isso feito voltamos a nos diluir e disfrutar mais uma vez. Mas infelizmente os Laureanos eram muito mais frágeis do que tínhamos imaginado. Quando despertamos novamente havia droidnoides por todos os lados. Silion Beta estava sendo devorado além de qualquer coisa que poderíamos fazer. O planeta iria colapsar.

Unimo-nos todos e viajamos até aqui, o planeta que vocês chamam de Iridium. Uma grande ganância cresceu dentro de mim. Como os droidnoides eu queria consumir tudo. Rapidamente me dissolvi para evitar o pior e vivo aqui feliz desde então. Eu jurei jamais me revelar novamente para um ser baseado em carbono ou para um ser criado por seres baseados em carbono. Minha tecnologia é mais do que capaz para isso. Para vocês o que eu chamo de tecnologia soaria como mágica. Para jamais ser visto novamente bastaria eu não intervir. Mas então... eu senti a sua dor... e eu tive que ajudá-la. E uma coisa levou a outra e agora você está aqui.

Volte bem para casa. Não me importo que conte aos outros. Não me importo de compartilhar este planeta com vocês. Mas não volte nunca mais a me procurar. Vou me dissolver e viver feliz. Só voltarei a me unir novamente se alguém tentar reconstruir a arma do juízo final. Já instrui a todas as minhas partes a nunca mais ajudarem outra criatura baseada em carbono por mais que sintam que devam fazer isso.”

Conto Paródia: By the book

E foi assim que aconteceu. A professora substituta simplesmente largou aquele livro na minha mesa e eu tomei o maior susto. Foi bem no final da aula. Aí o sinal tocou e foi aquela bagunça. Já tinha me esquecido de como ela chegou cheia de pose na aula de literatura. Toda cheia de si com seus seios inchados, seu sorriso vermelho-cínico e sua roupa ridícula. O olhar maquiado dela, de quem vai para uma festa, – que sem noção, eram 2 horas da tarde – só não era mais irritante do que os que ela atraía para si. Os meninos pareciam olhar como cachorros vendo frango frito. E até umas garotas lá da sala acharam ela linda. Que fúteis...

Quando ela largou o livro na minha mesa eu estava pensando em coisas bem mais importantes. Há grandes injustiças nesse mundo. Minha amiga Olívia, por exemplo, fazia de tudo pelo Gabriel. Mas ele pisava nela e se divertia às suas custas. Por que é sempre assim? Por que alguém não se apaixona e recebe amor de volta? Tanto tempo perdido. Era só as pessoas se curtirem, se gostarem e... beijarem.

Guardei aquela porcaria de livro sem nem olhar para a capa junto ao restante do meu material. Segui a minha vida sem nada de importante para contar. Passou a terça, a quarta, a quinta e assim foi. Passou outra semana inteira. Foi só na outra quarta que me lembrei.

– Laura, por que será que ela só deu aquela aula e nunca mais voltou?

– Anh?

– Ela era tão linda, não é?

– Quem, Amanda?

– A professora substituta.

Ai ai... nem prestei mais atenção. Me lembrei daquela porcaria do livro que ainda estava na minha mochila. Dispensei a Amanda com uma desculpa qualquer e fui à biblioteca. Eu não iria ler aquilo. Se a professora não voltou para pegar de volta iria devolver na biblioteca. Não queria nada dela comigo.

– Não é do acervo.

– Mas é da professora substituta.

– E qual é o nome dela?

– Eu não lembro.

– Então vai ter que encontrá-la. Sinto muito.

Sentei a uma das mesas e joguei aquela porcaria sobre o móvel e fiquei ali de bobeira pensando na vida.

– Mil beijos, Laura?

– Quê, Bruno?

Ele estava achando a maior graça de tudo, de alguma coisa.

– Esse livro que você está lendo. Está escrito na capa. É o título.

Fiquei com o rosto vermelho. Dei um sorriso amarelo. Mostrei desinteresse. E assim que ele saiu abri o livro.

Fiquei decepcionada. Só tinha duas páginas escritas. A maior parte parecia um manual de instruções. Folheei e confirmei. Eram várias páginas em branco e duas páginas escritas. Li só o final da última página. “Só siga as regras, pense num rosto e escreva um nome”. Não sei o motivo, mas achei essas instruções engraçadas. Escrevi o nome da Amanda e pensei no rosto do Bruno. Acho que era só por ter falado com eles por último. Foi aí que eu escutei o “oooow”.

Bruno era bem mais alto que ela. Amanda estava na ponta dos pés. Eles se davam um beijo suave e lento. Um beijo na boca. De língua.

Não durou muito tempo. Vieram separá-los. Como se estivessem cometendo um crime ou matando alguém ou sei lá. Eles se separaram e dava para ver o rosto dela queimando. Eu sei que foi o seu primeiro beijo. Será que eu fiz isso? E se ela tiver odiado? Será que a culpa foi minha? Eles se despediram meio envergonhados meio achando graça de tudo. Ele saiu da biblioteca e ela veio até a mim.

– Nossa.

Disse abanando o rosto com as mãos.

– Que foi isso?

– Não sei, Laura. Eu estava te procurando. Achei você meio estranha quando saiu e vim te procurar. E não sei o que aconteceu. Vi o Bruno e ele veio me beijar.

– E o que você fez?

– Bom. Eu fui beijar ele, né?

Rimos nervosas.

– E aí?

– Não sei. Quero outro para saber.

Rimos mais um pouco, agora mais relaxadas, cúmplices.

Voltei para a aula e a noite foi tanto dever que não lembrei nem de comer, quase me esqueci de dormir.

No outro dia era uma mágica. Amanda e Bruno estavam juntos e até andavam de mãos dadas.

Foi então que eu vi a Olívia chorando num canto.

– O que foi, amiga?

– Nada não, só eu que sou uma idiota.

Eu só fiquei lá disposta a ouvir mais um pouco.

– O Gabriel não quer nada comigo. Ele já disse isso mil vezes. Mas eu não o esqueço. Eu me faço de boba. Todas as vezes. Eu sou uma idiota.

– Não é não. Mas eu acho que você não deveria desistir.

– Como é?

– É sério. Na verdade eu acho que você deveria ir nele agora.

– Mas ele acabou de fazer graça de mim na frente dos amigos dele.

– Eu tenho um sexto sentido para essas coisas.

Ela se levantou incrédula, enxugou as lágrimas e foi até o Gabriel e seu grupo de amigos. Um deles viu e comentou algo baixinho entre o grupo, o segundo amigo fez uma careta e o terceiro deu uma risadinha maldosa. Só não vi a reação de Gabriel que estava de costas. Era um desastre certo.

Antes de ela chegar até ele eu peguei o livro e escrevi o mais rápido que pude o nome da Olívia enquanto pensava no rosto do Gabriel.

Ele se virou e a encarou, tinha o olhar diferente. Parecia que via algo lindo pela primeira vez. Ela chegou forte e disse bem alto.

– Gabriel eu te amo e não importa o que acontecer ou você fizer eu nunca vou desistir de nós.

Ele não respondeu. Puxou ela para si em um abraço. E deu um beijo rápido nos seus lábios. Ela nem fechou os olhos. Estava perplexa. E do primeiro beijo se seguiram outro e outro. E a cada um os amigos dele pareciam mais embasbacados. Não vi quando pararam.

Nos dias seguintes formei mais dois casais. Não fazia nada às pressas. Não era só mágica. Eu era uma artista.

Primeiro juntei Felipe, o menino do xadrez, com a sua musa do time, karine. Felipe tentava. Mas Karine nunca achava que ele estava a sua altura. Seu amor nunca ocorreria de forma espontânea. Mas agora, comigo no controle, o destino seria sempre melhor que o esperado. Escrevi o nome dele e pensei no rosto dela. E eles formavam um casal muito legal.

Depois juntei a Márcia e o Adriano. Todo mundo sabia que eles se amavam. Trocavam olhares. Mas ninguém tinha coragem de dar o primeiro passo. Sem chances e oportunidades perdidas. Eu fazia tudo com muito gosto.

De uma hora para outra aqueles dias chatos e cheios de erros e enganos se tornavam os melhores dias da vida de todo mundo.

E agora era a minha vez. Passei uma semana só observando. Eu não me apaixonaria por qualquer um. Escolhi, escolhi, escolhi. E achei por engano num esbarrão.

– Desculpa, Laura.

Ele tinha um cheiro gostoso de chocolate com menta. Acho que fiquei um pouco vermelha.

– Não tem problema.

Ele sorriu para mim.

– Eu preciso te recompensar. Gosta de chocolate?

– Adoro. Mas não precisa de nada, sério.

– Não esquenta. A minha mãe está voltando de viagem e sempre traz umas coisas. Só que você vai ter que esperar duas semanas que é quando ela volta.

Era isso. Era ele. Estava decidido. Não ache que foi por qualquer coisa que aconteceu. Eu sei que pareceu tudo muito ao acaso e sem significado. Mas eu senti. Foi uma coisa de pele.

Eu abri o caderno, mas não tive coragem. Não sei. Não me senti bem. Com os outros era diferente. Existia sempre uma vontade, pelo menos de uma das partes, e eu só facilitava as coisas. Mas comigo, sendo o poder meu, era como se eu o forçasse. Não parecia certo. Não parecia direito.

Eu não conseguia abandonar a ideia, mas também não podia seguir em frente. E assim passou um dia e depois outro. Então eu desisti. Aquilo era errado de alguma maneira que eu não sabia justificar num raciocínio muito claro. Eu só sabia e sentia que era.

Foi só então que eu me toquei no que estava acontecendo ao meu redor. A Amanda tinha começado a usar óculos. Era um modelo de haste plástica preto que era bonito e contornava bem o seu rosto. Porém a mudança não foi a única. Nesse mesmo período ele começou a evitá-la e a mudança era visível.

Um dia a Amanda veio conversar comigo.

– Ele está me evitando. Mas estava tudo tão bom. O que será que está havendo? Será que eu fiz alguma coisa?

Noutro veio o Bruno.

– Olha eu sei que você é amiga dela. E eu gostei de estar com ela. De verdade. Mas eu não sinto mais nada. Não sei o que dizer. Eu a evito porque não quero magoá-la. Mas não posso mais continuar assim. Tudo pode ficar ainda pior. Como eu faço?

E isso não foi tudo.

Felipe passou a ver todos os jogos de Karine. Um dia a bola acertou o seu rosto com força. O inchado foi terrível. E junto com o machucado cresceu o desprezo dela por ele. As brigas eram cada vez mais públicas e constantes.

A gota d’água foi com a Olívia. Ela tinha cortado o cabelo. E junto com eles foi cortado seu encanto. Gabriel terminou com ela quase que quando a viu. Ela foi aos prantos.

Eu queria ajudá-la. Mas não seria a consolando. Eu precisaria parar aquilo enquanto era tempo. Corri para o banheiro, me tranquei em uma das cabines e tentei apagar os nomes escritos ali de todas as formas. Mas eles não apagavam. Nada acontecia. Nada funcionava.

– Não vai dar certo.

Ouvi a voz da professora substituta junto com o barulho de água. Destravei a por e saí para vê-la lavando as mãos.

– Quem é você de verdade?

– Tive muitos nomes. Suc, como me apresentei à sua classe, é um apelido carinhoso de Succubus, mas já fui chamada de muitos nomes, Isis, Afrodite, tantos que nem me lembro de todos.

– Eu vou arrancar os nomes dos meus amigos desse caderno nem que eu precise rasgá-lo e queimar todas as páginas.

– Não é assim que funciona. Você deveria ter lido as regras. Está tudo no livro. Uma vez escrito, só eu posso apagar um nome. E não é do meu interesse fazer isso. Aqueles cujos nomes estão aí registrados jamais deixarão de amar aqueles cujo rosto foi apenas imaginado. Entretanto, estes sentem apenas um amor passageiro tão efêmero como a mínima mudança no rosto de sua contraparte. Mas não se preocupe. Mesmo sem os incidentes, mesmo sem nada, um dia eles iriam envelhecer e as mudanças naturais da idade iriam determinar o destino que você selou.

– Mas isso é tão cruel. Por que você faz isso?

– Porque eu me alimento da desilusão e do tormento que essas almas sempre sofrerão. Uma vida traçada por você de um amor inesquecível apenas brevemente correspondido. Um jamais vai esquecer enquanto será rapidamente esquecido. Nada que você fizer agora pode acabar com isso.

E eu comecei a chorar cheia de culpa e remorso.

– Isso também não vai dar certo.

– Só tem uma maneira de você expiar a sua culpa. Anote seu nome neste caderno. Pense em alguém. Viva uma um instante de paixão. E nada mais vai te importar. Você não sentirá culpa pelo que fez aos seus amigos. Estará na mesma situação que eles. Até seu último momento de vida tudo aquilo que você fizer vai ser feito buscando o amor que você nunca terá de volta.

E crescendo em presença, como se dominasse todo o ambiente pronta para dar o seu bote na minha alma, concluiu.

– Anote o seu nome no caderno e imagine o seu único e sumário amor.

Eu levantei o caderno e comecei a anotar. Não havia alternativa.

Escrevi. E estava feito. Era a única coisa que poderia ser feita. Era a única salvação. Enquanto escrevia Succubus no caderno só pude pensar em todos nós, em cada um de nós, nos meus amigos, em mim, em você e em como nunca mais deveríamos cair nessa armadilha.

E ela grunhiu, e queimou, mas não resistiu. Apagou nome a nome todos que eu havia escrito. E sumiu, ali mesmo da minha frente.

Não que os sinais de tudo aquilo que eu havia feito desapareceram. Estavam todos lá. Mas estavam todos também livres. E tiveram todos muitos amores. Tantos que eu não sei dizer. Com o tempo e com as experiências se esqueceram de tudo.

Quanto a mim? Eu vi o Vitor novamente. Não havia dito o nome do garoto do esbarrão antes?

– Aqui está o que eu te prometi.

E me entregou um chocolate num embrulho bonito.

– Obrigada. Era mais do que precisava.

– Eu sei. – Disse com um sorriso maroto e um olhar de atrevido – Mas agora é você que está me devendo.

– E o que você quer em troca agora? – Respondi na mesma moeda.

O gosto foi delicioso, mas o chocolate eu só provei muitas horas depois quando cheguei em casa.

Não foi o fim da minha vida amorosa, mas foi um ótimo começo.

Conto Histórico: Anhana - 1570

Caminhava sozinha pela natureza com passos leves e vista perspicaz como uma jaguatirica. Gostava assim. Se misturava e se ambientava.

O marrom claro, bronzeado e brilhante de sua pele, característica única de seu povo em tonalidade jamais repetida no planeta, compunha com o verde da mata que lhe fazia redor como a moldura compõe a beleza da arte.

A pintura da sua pele era absolutamente preta e ocupava quase exclusivamente o tronco. Vestia-lhe sem tecido de forma quase interiça com poucos espaços de intervalo no qual os desenhos sempre lembravam formas geométricas simples e determinadas. Sua forma iniciada no meio das coxas seguia até a meia taça dos seios lembrando um espartilho que ao invés de apertá-la expandia a sua presença com uma imagem conquistadora.

Caminhava sozinha porque encontrava companhia mais agradável. Não que não gostasse de algumas pessoas. Gostava. Mas gostava um bom tanto de si para querer sua própria presença exclusiva pelo menos algumas horas por dia. Além do mais achava-se em idade de se casar e ela ainda não tinha encontrado ninguém dentro ou fora da tribo pelo qual tivesse desejo verdadeiro.

Como era coletora, boa parte de sua arte era encontrar bons recursos para trazer à tribo. A divisão de tarefas era simples. Se você era um garoto poderia ser construtor, o que significava derrubar árvores da mata atlântica e fazer delas casas e barcos, ou ser um caçador que significava caçar animais e, em tempos de guerra, tribos inimigas. Se você é uma garota poderia administrar o dia-a-dia da aldeia com tudo o que isso envolve ou coletar recursos. Ela definitivamente era uma coletora: perspicaz, inteligente e ágil.

Tec. Pisava em um galho estridente. Incomum. Tec. Pisava em outro e pressentia o perigo. Afastou as pernas arrastando-as pelo chão coberto por folhagens e com vários gravetos ocultados. Não se preocupou em evitar o som. Já sabiam que ela estava ali. Flexionou os joelhos. Abriu os braços e girou o tronco em equilíbrio em vigília panorâmica.

O primeiro maracajá se aproximou de mansinho saindo de trás de um arbusto e os outros felinos a cercaram com calma ameaçadora de uma posição elevada galhos das árvores em cerco. Era uma emboscada. Estes gatos costumam predar pequenos mamíferos, mas não deixariam passar uma presa grande sozinha e emboscada.

O primeiro saltou sobre ela e com um giro se esvaiu. E eles começaram a cair sobre ela como chuva de granizo em campo aberto. Ela se desviava e empurrava os bichos aos socos, giros e pontapés. Unhas cortaram seu braço direito. Mas alguns só a atacavam diretamente. A maioria agia estrategicamente e se dividia em dois grupos. Um ficava no caminho correndo e rodeando. Outro topava com ela com a força de seu salto e de seu peso. O objetivo ali, ela sabia muito bem, era derrubá-la. Uma vez no chão e era o seu fim.

Mas onde os caçadores agem com força, coletores agem com perícia. Um só descuido da retaguarda da cambada e três saltos muito determinados a transportaram do centro ao perímetro e de lá para a distância.

Corria a aclive suave desviando dos maracajás que eram muito mais velozes que ela e a acompanhavam de cima pelo caminho formado dentre as árvores.

Foi então que abruptamente ele apareceu: o despenhadeiro. Mais de 20 metros até o rio. Saltou e se fez flecha. Dezena de setas a acompanhando contra o sol sem nuvens. Na água não tinha que temer os felinos. Sair da correnteza já era um desafio um tanto maior. Uma coisa era enfrentar criaturas inteligentes como ela. Outra totalmente diferente era bater a dinâmica bruta da natureza na sua manifestação de força ancestral.

Não autorizada a alcançar as margens, tomou um tronco para não se afogar. Exausta adormeceu sobre ele.

Seu destino era o mar.

Conto Satírico: Bom dia!

– Odeio as pessoas da manhã.

Abriu Fernando Eduardo quase sussurrando. Ele possuía um sorriso falso na cara e pose confiante enquanto aguardava aparecer algum cliente na loja de eletrônicos.

– Aquelas que acordam com os primeiros raios de sol felizes por existirem...

– Não precisa explicar. É só uma tradução merda de morning people.

Interrompeu Carlinhos ao seu lado com a mesma cara alegre olhando para a porta aberta por onde nenhum cliente tinha entrado ainda.

Passou alguém no corredor do shopping que mirou dentro da loja, mas seguiu em frente sem nenhuma consideração. Fernando e Carlinhos retomaram o papo.

– Que seja. O fato é que não sei como alguém pode ser feliz pela manhã. Hoje eu acordei meia hora atrasado e tinha que escolher entre o banho e o café.

– E o que foi?

– Não sou bom para escolher. Então fiz as duas com 15 minutos a menos em cada.

– E funcionou?

– Sim e não.

– Como assim?

– Comi pão molhado e manchei o punho de manteiga.

– Então deu certo. Cumpriu o prometido sem cobertura de nada adicional. Não é isso que fazemos?

– É...

– Só não deixa o Rafael ver. Sabe como ele é paranoico com limpeza. Capaz de te dar balão por isso.

– Não posso perder um dia de salário.

– Então é melhor não deixar ele ver isso aí. Porque ele vai surtar.

Através do vidro dava para ver pouco além do fim do corredor. Lá, próximo da loja de chocolates, despontava um rapaz. Ele vestia uma blusa azul clara e um sorriso genuíno. Tinha o cabelo curto, castanho, na moda e um olhar petulante. Vinha como uma Miss acenando e cumprimentando todos no caminho.

– O cretino é amigo de todo mundo, Fernando.

– Pior, Carlinhos. Não conheço uma solteira deste piso que não seja louca por ele.

– Ele também me deixa louco.

– Nem me fala.

O terceiro sorriso entrou na loja e apresentou um breve olhar em revista. Fernando com elegância tinha o braço direito para trás do corpo. Carlinhos o acompanhava.

– Bom dia winners!

A felicidade do recém chegado naquela manhã saltava de seus gestos amplos e conquistadores. A fragrância que usava chegou logo em seguida.

– Bom dia Rafael.

Carlinhos e Fernando Eduardo disseram ao mesmo tempo.

– Muito trabalho para fazer. Hoje o dia vai ser especial. Tive um sonho sobre isso. Quanto já vendemos até agora, Carlinhos?

– Nada ainda, Rafael.

– Hoje está meio fraco.

Um poodle acompanhado de uma ruiva ferrugem de óculos de sol marrons e bolsa de custar salários pararam às costas do gerente.

– Dá licença, vocês tem o iPad novo?

Os encontros de olhares entraram de carrinho nos sorrisos. E Rafael cabeceou a oportunidade para Fernando.

– Claro que temos, senhorita. Me acompanha, por favor.

E saíram para uma mesa iluminada que ficava à direita de quem entra.

– Carlinhos, vem comigo. Se não aparecem clientes, podemos reorganizar o estoque.

E se foram para dentro da loja deixando Fernando Eduardo cuidando da cliente.

O cãozinho estava inquieto arranhando os móveis e foi para o colo se acalmar.

– ... a tecnologia Sun rising dá uma imagem magnífica na tela sem requerer muita bateria. E a nova câmera Rise n’ shine! permite fotos de modelo mesmo com baixa luz.

Ferrugem parecia um pouco entediada e Fernando precisava daquela venda.

– Parece muito com o antigo. Segura ele para eu mexer um pouco?

– Claro.

Fernando Eduardo tomou o peludinho no colo. O cãozinho ficou calmo e tranquilo. Fernando gostava de bicho e o animal sentia isso. Iria ajudá-lo a fechar aquela venda. Dois por cento de comissão naquilo pagavam sua conta de luz.

A ruivinha era muito bonita, notou agora que ele podia prestar atenção. Enquanto isso ela usava o iPad e comentava uma coisa ou outra. Era claro que ela sabia mais sobre o gadget que o vendedor.

Fernando percebeu o motivo de tanta cooperação do poodle. Ele estava mastigando o punho da sua camisa, chupando toda mancha de gordura.

“Puta merda!”

Ele tentou tirar o cachorro, mas o animal se prendia de algum jeito. Deu o puxão discreto mais forte que pôde e percebeu que perdeu um botão. Arregalou os olhos e teve vontade de jogar o cachorro longe.

Mas ao invés disso fez um afago.

– Vou levar.

– Quê?

Disse ainda pensando no que faria com a manga solta, borrada e babada.

– O iPad. O que mais seria? Você deveria parar de olhar para as clientes e prestar mais atenção no seu trabalho! Quando alguém começar a gritar “assédio” você não vai gostar. E as mulheres vão fazer a sua loja fechar.

– Jamais faria isso, moça.

– Senhorita.

Disse a moça irritada.

– Senhorita.

– Vou tirar a nota. Me acompanha, por favor.

Fernando trocou o cão pelo iPad e foi finalizar a venda no caixa.

Chegando lá, o sistema estava lento como de costume. Cada comando levava vários minutos. Perdeu-se pensando no que fazer. Se o Rafael visse o estado do seu uniforme nem aquela excelente venda matutina o salvaria de outra pregada. Tinha o olhar fixo à frente vendo o que poderia fazer. Dobrou as mangas logo acima dos cotovelos de uma forma que ocultava os punhos em um estilo descolado, sem mudar o olhar ainda longe dali.

– Você está olhando para o meu decote?

Reparou então que seu olhar baixo e desorientado voltava lhe os olhos para os dois montes por trás de onde se levantava uma indignação ansiosa para se transformar em fúria.

– Claro que não.

– Então deveria parar de olhar.

Parou. Voltou-se para o computador.

– Quer fazer o cadastro?

– O que precisa?

– Só do CPF e do nome.

– Tá bom. Isabela Sunshine.

E mostrou o documento. Em seguida pagou por tudo à vista.

Terminada a venda, Isabela mudou o semblante. Tinha esquecido qualquer sentimento de ofensa e parecia excitada com o brinquedo novo. Saiu da loja radiante.

Carlos já havia voltado e, vendo o final da venda, perguntou:

– Por que não ofereceu o modelo top de linha? Está em promoção. Vem com o dobro de memória e garantida estendida pelo mesmo preço.

– Porque, Carlinhos, cumprimos o prometido sem cobertura de nada adicional. Não é isso que fazemos?

Fernando sorriu.

Carlinhos também sorriu.

Marcas genuínas.

Não passou muito e Fernando estava atrás do balcão com Carlinhos ao seu lado. Foi então que Rafael apareceu. Só Fernando reparou que o gerente tinha uma luz brilhante emergindo acima de seu ombro esquerdo. Reflexo da vitrine, talvez, que tornava incômodo olhar diretamente.

– Que porcaria é essa, Fernando?! Mangas dobradas? Isso aqui é a sua casa? Você descaracterizou o uniforme. Agora não tem mais o que fazer. Devem estar todas amarrotadas. Se repetir isso outra vez vai levar balão!

E Fernando Eduardo ficava lá olhando com sua falsa atenção. Aquela era só mais uma manhã como tantas outras. O vendedor já havia aprendido a lidar com a situação. Só ouvia seus pensamentos:

“Eu odeio pessoas da manhã.”

“E manhãs.”

“E pessoas.”

Conto de Sentimento: Smartphone

Olharam-se.

...

Antes, porém, viam suas telas. Sós com seus mundos de informação supérflua, efêmera e abundante. O brilho coloria seus rostos. Luz e sombra criava o contraste sobre um semi-sorriso abobalhado. Lábios com uma falta de conteúdo, com a falta de uma história, um não-senso de propósito. Não tinham consciência do entorno, senão uma vaga imaginação do suposto vazio em volta. Seguiam como navegantes que encontraram uma ilha de delícias tão convidativa quanto aprisionadora. Estavam presos. Capturados num destino tão imediato e imutável porque lógico: não havia nada mais a fazer num elevador que subiria.

As portas se fecharam sem pressa. O insignificante então atuou. Sem o sinal o desencanto se quebrou. Não havia nada mais para ver que não fosse conhecido.

Com a janela das infinitas possiblidades vulgarizada em peso de papel, o foco deslocou-se.

...

Foi o primeiro despertar.

O chão ignorado compôs o quadro junto da mão que segurava o celular. Era um carpete vinho que foi acinzentado pelo desgaste do envelhecimento. De súbito o esplendor de um mundo a se mostrar pela timeline infinita foi interrompido pela concretude do fugaz.

A forma retangular do piso, as cores em degradê, os amarrotados e os encontros entre o aço escovado das paredes; nada satisfazia à curiosidade acostumada ao bombardeio sensacionalista da internet. Entediavam-se. E porque toda ação tem uma reação igual e contrária, buscavam em aclamação por um pouco de drama.

...

A busca trouxe o segundo despertar.

Esquadrinhando o chão a vista percebeu pés que não eram seus. Não estavam sozinhos, afinal. A consciência um do outro até então ignorada era incômoda. Quem poderia existir tão próximo de si sem pedir consentimento transformando a cena num mundo exótico fora do controle. Encontravam-se em uma total antítese ao que os aparelhos portáteis já guardados até a pouco tempo ofereciam.

O campo de visão deslocou-se num misto de irritação da invasão e curiosidade sobre o não-maçante.

...

O deslocamento trouxe o terceiro despertar.

O olhar viajava. Começou pelos pés que em sapatos eram bem diferentes: os dele bem pretos tampando tudo, os dela em um bege ousado que mostrava o dorso dos pés.

Estavam indignados. Não só notavam estranhos invasores de um momento que deveria ser privado e solitário. Nem eram só diferentes.

Eram antagônicos.

Eram opostos desde o primeiro detalhe.

E a diferença aumentava conforme subiam. Ele vestia calças jeans sem absolutamente nada agradável de se mencionar e ela tinha as pernas inicialmente nuas só interrompidas por uma saia que começava nos joelhos de cor clara sem importância. Até as camisas sociais que compartilhavam eram neles objetos de dissemelhança. Enquanto nele fazia linhas retas, nela contornava displicentemente suas curvas tão perceptíveis quanto monótonas. Os braços dele bem cobertos pelo tecido e os seios dela sem nenhum decote não chamavam atenção - se é que haveria algo ali que pudesse fazê-lo. Viram então o pescoço, os lábios sem cor e as bochechas.

...

O quarto despertar foi um choque arrebatador.

Chegaram aos olhos um do outro ao mesmo tempo.

Foi então que se olharam.

E sentiram-se.

E se viram.

Pela primeira vez.

Uma consciência percebida diretamente por outra tão consciente de si quanto do fato de também ser observada.

A energia passou por todo o corpo. De repente encheram-se de vida.

Sorriram de modo gostoso, confiante e verdadeiro.

E o tempo parou e depois retrocedeu.

Voltaram aos lábios convidativos e cheios de cor.

Beijaram-se. Não só se beijaram como se jogaram um contra o outro em desejo e delícia. Cada contraposto encaixando e complementando. Cada um querendo o outro.

De olhos fechados não mais se viam, mas se sentiam e se compreendiam. Seus lábios brincavam e se divertiam juntos como se tivessem sido feitos para serem assim: inocentes, despreocupados e selvagens.

Aquele momento era único. Aquele momento era só deles.

...

Passaram-se horas. Nunca mais iriam se desenlaçar.

...

O tempo, que havia parado, retomou lentamente sua cadência. Avançou sem solavancos do banal à glória.

Acabaram em algum momento desencantando-se no sexto andar.

Separaram-se não totalmente bem a tempo de olhar mais uma vez - pela segunda vez - profundamente um nos olhos do outro. Sorriram.

Desceram juntos no mesmo sexto andar daquele prédio cinza daquela cidade cinza.

Trabalhavam ali com os processos administrativos cautelares.

Nunca haviam se visto antes daquele acontecimento.

Nunca se veriam novamente.

Eram vizinhos de baia.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Reflexões #?

Na física e psicologia, o segredo é a transformação de energia. Enquanto criar energia é muito custoso, por todo lado há energias jorrando que podem ser modeladas, reaproveitas e redirecionadas.

domingo, 5 de julho de 2020

Sociedades Cristãs e o Perdão

Estamos construindo sociedades cada vez mais anticristãs baseadas na culpa (geralmente em relação a eventos que não podemos mais alterar) e pela revanche, com essas duas se alternando numa espiral destrutiva do corpo e do espírito.

Uma sociedade cristã deveria se basear no perdão de si mesmo (Jesus Cristo tirou todos os pecados do mundo) e no perdão do outro.

Uma sociedade do perdão reforça o espírito, a alma, a mente e o corpo.

Perdoe-se. Perdoe o próximo. Perdoe o distante.

O perdão relaciona-se ao passado e alimenta a esperança que se relaciona ao futuro. Perdoar não é se distanciar nem se alienar do que acontece no presente nem do que se prevê que acontecerá no futuro. Disputas de ideias por caminhos podem continuar acontecendo. Mas uma vez que já aconteceu algo que não foi bom: perdoe.

domingo, 28 de junho de 2020

Liberdade de Expressão #1

Liberdade de Expressão deve ser a primeira regra em uma Verdadeira Democracia Liberal. As pessoas tem todo direito de não concordar com o que você disse. Mas ninguém tem o direito de te impedir de dizer. Devemos ter liberdade para expressar o que acreditamos (e receber críticas).

quarta-feira, 17 de junho de 2020

"Fé é quando você coloca o pé primeiro e em seguida Deus coloca o chão." Autor Desconhecido. Ouvi da Larissa Oliveira.

quinta-feira, 7 de maio de 2020

LA REINE EST MORTE, VIVE LA REINE!

Por Renato Pedrosa

Civilizações são construídas sobre conceitos. Geralmente uma pessoa que se diz prática e desapegada da teoria é escrava das ideias de um grande pensador que a antecedeu, um feitor de quem ela muitas vezes nem sabe o nome. É impossível mudar ou desconstruir uma civilização sem antes mudar ou desconstruir seus conceitos maternos da mesma forma que é impossível mudar ou desconstruir um discurso sem refutar seu argumento central.

Muitas sociedades ocidentais de inspiração greco-romana foram erguidas sobre os fundamentos da beleza como ideal estético, da verdade como preceito orientador e da racionalidade como procedimento. Sobre esta base a cultura (superestrutura da infraestrutura do corpo da comunidade) foi organizada e definida como resposta ao seu objetivo (a verdade), à sua forma (bela) e ao seu procedimento (racional).

Como conceitos orientadores eles precisavam ser universais. Não poderia haver dúvidas.

A racionalidade que se metamorfoseou-se em lógica que cresceu no método científico precisava ser absolutamente clara. A racionalidade era o uso da maior quantidade possível de faculdades intelectuais para obter os melhores resultados possíveis. Seu antônimo, a irracionalidade, era a utilização de quaisquer outros métodos que só seriam capazes de gerar resultados menos desejáveis.

A verdade era a única possibilidade existente e objetiva com foco no objeto observado. Este continha em si características imutáveis e independentes da perspectiva de cada observador. Seu antônimo era a mentira. Ela era qualquer outra explicação alternativa criada pelo sujeito observador que não condizia com as características inerentes e imutáveis do objeto observado em determinado ponto do tempo.

A beleza era a expressão mais pura e completa da prática da razão em busca da verdade. Seu oposto era o feio, o rude e o tosco. Estes antônimos significavam o uso irracional dos recursos disponíveis ou a busca pela mentira. O não-belo era o incapaz ou o falso.

A cultura é constituída de elementos menores que são modelos mentais similares. Estes são também conhecidos como valores. Os valores são transmitidos por meio da vida vivida e da vida inventada. Chamamos de experiência o aprendizado de valores surgidos da vida vivida e chamamos de arte o aprendizado surgido da vida inventada. Não à toa as formas de artes mais populares eram as que melhor contavam histórias. As histórias sejam cinematográficas, literárias ou outras sempre foram poderosas ferramentas de transmissão de valores.

O Patinho feio era feio porque ele não era pato. Ele era Cisne. Suas tentativas de tornar-se pato eram irracionais porque ele era incapaz de mudar sua natureza e sua tentativa de já ser um pato era mentirosa porque ele já era um cisne. Se algo fosse falso ou se algo fosse tolo, então a expressão estética deste algo seria feia. Mas se ele fosse cisne seria lindo e lindo se tornou quando cisne se compreendeu.

A mais bela sociedade era aquela que, quando comparada com outras, era mais próspera e resiliente. Sociedades são formadas de células menores cujas mais notáveis são as famílias. A mais bela família era aquela que, quando comparada com as outras, era aquela com boas condições materiais e com boas relações entre os seus indivíduos. O mais belo indivíduo era aquele que, quando comparado aos outros, era o mais saudável e feliz.

Visto de outra forma, o indivíduo era belo porque era capaz de constituir uma família bela e uma família era bela porque era capaz de gerar uma sociedade bela.

A verdade de uma vida plena realizada pela racionalidade dos melhores meios exibia-se como uma vida bela.

Beleza então é aquilo que se deseja. O mais desejável é o mais belo.

Mas seria a beleza universal? Só poderia sê-lo na medida em que a verdade fosse universal e a racionalidade também fosse. Em outras palavras, se existir verdade e se existir racionalidade existirá o belo.

O interessante é que todas essas medidas só fazem sentido porque são expressões de percepções contrastadas. Só há o belo porque há o feio, só há o racional porque há o irracional e só há a mentira porque há a verdade.

Se há algo que seja feio, irracional ou falso; ele só o é porque poderia ser belo, racional e verdadeiro. Desta noção surge o conceito de justiça.

O justo é aquilo que podendo ser belo é belo, podendo ser racional é racional e podendo ser verdadeiro é verdadeiro. Por contraste o injusto é aquilo que podendo ser belo é feio, podendo ser racional é irracional e podendo ser verdadeiro é falso. Justiça é criar o justo tornando o feio que poderia ser belo em belo, o irracional que poderia ser racional em racional e/ou tornando o falso que poderia ser verdade em verdade.

Mas essas comparações não são somente feitas com aquilo que já existe. O ser humano é capaz de sonhar e imaginar. Elas são feitas também com aquilo que ele imaginou.

O processo de imaginar tira o mundo do objetivo e o recentraliza no subjetivo.

O feio pode ser belo se comparado com algo imaginário que seja ainda mais feio. O belo pode ser feio se comparado com algo imaginário que seja ainda mais belo. O racional pode se tornar irracional se comparado a algo imaginário mais racional. O irracional pode se tornar racional se contrastado com algo imaginário ainda mais irracional.

Até o domínio da natureza há pouco espaço para isso. Alguém pode até imaginar-se imortal, mas a morte provará seu equívoco representando o triunfo do objetivo sobre o subjetivo. Um leão selvagem pode ser imaginado manso, mas seu feroz ataque o provará feroz representando o domínio do objetivo sobre o subjetivo.

Porém, quando a capacidade humana impede qualquer leão de nos atacar, nós podemos imaginar e manter a imaginação de que o leão é manso ainda que ele seja em sua verdadeira natureza feroz. O objetivo perde força e o subjetivo alça voo livre.

Neste instante uma nova sociedade pode ser construída. A sociedade do prazer absoluto. Da mesma forma que a drogas podem subverter sistemas do corpo e ativar centrais de prazer existentes para outro propósito, o subjetivismo pode oferecer a sensação de realização última a uma sociedade.

Para essa construção a verdade não pode estar no objeto, mas no sujeito. O cisne é pato porque é do meu desejo que ele seja o que ele quer ser. E, se eu não o quero ver, o imagino e o idealizo belo. A bela imagem que eu vejo é do pato que não existe, imaginário. A bela imagem que eu vejo é surgida do cisne que eu não vejo. A verdade é o que se quer que ela seja. E porque há muitas vontades, há muitas verdades. Se o racional é aquilo que eu quero que ele seja há muitas racionalidades. Se o belo é aquilo que eu quero que ele seja, há muitas belezas – todas elas locais, nenhuma delas universal.

Cria-se uma cultura de adaptação do mundo ao ser que é contrária à natural adaptação do ser ao mundo.

O mundo vai ficando cada vez menos importante até desaparecer por traz do sonho.

O ser isolado se auto engana. É parte do mundo que o rodeia. Só não é nos seus sonhos. E sonha até o sonho se apagar com o fim do seu tempo de existência.

sábado, 18 de janeiro de 2020

Ciências Humanas

Dois mitos arrasam o desenvolvimento das ciências humanas.

1. Um deles é o mito da racionalidade perfeita. Seres humanos não são perfeitamente racionais (inteiramente lógicos todo o tempo). De fato, seres humanos são muito mais emocionais do que racionais (e mais instintivos do que emocionais). Rotinas, tradições, pré-conceitos, simplificações, mitos, lendas, narrativas, intuições, senso de importância, senso de pertencimento a grupos, afeições e desafetos entre outros governam uma imensa parte de nossas vidas.

2. Outro deles é o mito da irracionalidade perfeita. Seres humanos são biologicamente programados para serem racionais. Esta é nossa principal defesa natural às expensas de outras possíveis defesas encontradas em outros animais como garras e dentes afiados, veneno ou couro resistente. Como consequência não existe nada que nós façamos com razoável dose de voluntariedade que não envolva alguma reflexão racional. Nada feito em consciência é totalmente instintivo ou absolutamente emocional.

Com isto, qualquer estudo ou prática inter-humana precisa considerar que funções pré-racionais (emocionais e instintivas) em maior parte e funções racionais de apoio estão coexistindo em cada consideração, ação, interação e resposta humana. E se precisa compreender que os fenômenos comportamentais observados são resultados de complexas interações destes dois tipos de fatores.

Também é necessário atentar-se à satisfação de fatores essenciais e o nível de cada fator. Quanto mais essenciais e básicos à vida biológica forem os comportamentos, mais proporcionalmente reflexo-instintivos eles serão. Quanto mais abstratos e desassociados à sobrevivência imediata forem os comportamentos, mais proporcionalmente emocionais e intelectuais eles serão. A racionalidade é uma poderosa ferramenta evolutiva, mas todo esse poder custa imensas quantidades de recursos (foco, tempo, concentração, energias, utilização de "hardware" neuronal, etc) e as possibilidades da utilização da racionalidade são praticamente ilimitadas. Portanto, de cada indivíduo é exigido escolhas estreitas sobre em que aplicará sua racionalidade. A não ser que uma situação seja eleita importante em um determinado momento, apenas uma pequena quantidade de racionalidade estará influenciando o comportamento resultante. Logo, este será gerido preferencialmente por mais sistemas e respostas emocionais.

Uma outra dinâmica da questão é que uma forte insatisfação de fatores básicos à vida gera uma resposta contra-racional. Nestas situações o organismo luta para baixar e limitar o nível de racionalidade que foi incapaz alcançar níveis adequados para a sobrevivência futura e elege funções mais básicas instintivas para ajudar a retomar a normalidade. Por exemplo, é por este tipo de fenômeno que você passa quando toma alguma decisão com fome.