quinta-feira, 7 de maio de 2020

LA REINE EST MORTE, VIVE LA REINE!

Por Renato Pedrosa

Civilizações são construídas sobre conceitos. Geralmente uma pessoa que se diz prática e desapegada da teoria é escrava das ideias de um grande pensador que a antecedeu, um feitor de quem ela muitas vezes nem sabe o nome. É impossível mudar ou desconstruir uma civilização sem antes mudar ou desconstruir seus conceitos maternos da mesma forma que é impossível mudar ou desconstruir um discurso sem refutar seu argumento central.

Muitas sociedades ocidentais de inspiração greco-romana foram erguidas sobre os fundamentos da beleza como ideal estético, da verdade como preceito orientador e da racionalidade como procedimento. Sobre esta base a cultura (superestrutura da infraestrutura do corpo da comunidade) foi organizada e definida como resposta ao seu objetivo (a verdade), à sua forma (bela) e ao seu procedimento (racional).

Como conceitos orientadores eles precisavam ser universais. Não poderia haver dúvidas.

A racionalidade que se metamorfoseou-se em lógica que cresceu no método científico precisava ser absolutamente clara. A racionalidade era o uso da maior quantidade possível de faculdades intelectuais para obter os melhores resultados possíveis. Seu antônimo, a irracionalidade, era a utilização de quaisquer outros métodos que só seriam capazes de gerar resultados menos desejáveis.

A verdade era a única possibilidade existente e objetiva com foco no objeto observado. Este continha em si características imutáveis e independentes da perspectiva de cada observador. Seu antônimo era a mentira. Ela era qualquer outra explicação alternativa criada pelo sujeito observador que não condizia com as características inerentes e imutáveis do objeto observado em determinado ponto do tempo.

A beleza era a expressão mais pura e completa da prática da razão em busca da verdade. Seu oposto era o feio, o rude e o tosco. Estes antônimos significavam o uso irracional dos recursos disponíveis ou a busca pela mentira. O não-belo era o incapaz ou o falso.

A cultura é constituída de elementos menores que são modelos mentais similares. Estes são também conhecidos como valores. Os valores são transmitidos por meio da vida vivida e da vida inventada. Chamamos de experiência o aprendizado de valores surgidos da vida vivida e chamamos de arte o aprendizado surgido da vida inventada. Não à toa as formas de artes mais populares eram as que melhor contavam histórias. As histórias sejam cinematográficas, literárias ou outras sempre foram poderosas ferramentas de transmissão de valores.

O Patinho feio era feio porque ele não era pato. Ele era Cisne. Suas tentativas de tornar-se pato eram irracionais porque ele era incapaz de mudar sua natureza e sua tentativa de já ser um pato era mentirosa porque ele já era um cisne. Se algo fosse falso ou se algo fosse tolo, então a expressão estética deste algo seria feia. Mas se ele fosse cisne seria lindo e lindo se tornou quando cisne se compreendeu.

A mais bela sociedade era aquela que, quando comparada com outras, era mais próspera e resiliente. Sociedades são formadas de células menores cujas mais notáveis são as famílias. A mais bela família era aquela que, quando comparada com as outras, era aquela com boas condições materiais e com boas relações entre os seus indivíduos. O mais belo indivíduo era aquele que, quando comparado aos outros, era o mais saudável e feliz.

Visto de outra forma, o indivíduo era belo porque era capaz de constituir uma família bela e uma família era bela porque era capaz de gerar uma sociedade bela.

A verdade de uma vida plena realizada pela racionalidade dos melhores meios exibia-se como uma vida bela.

Beleza então é aquilo que se deseja. O mais desejável é o mais belo.

Mas seria a beleza universal? Só poderia sê-lo na medida em que a verdade fosse universal e a racionalidade também fosse. Em outras palavras, se existir verdade e se existir racionalidade existirá o belo.

O interessante é que todas essas medidas só fazem sentido porque são expressões de percepções contrastadas. Só há o belo porque há o feio, só há o racional porque há o irracional e só há a mentira porque há a verdade.

Se há algo que seja feio, irracional ou falso; ele só o é porque poderia ser belo, racional e verdadeiro. Desta noção surge o conceito de justiça.

O justo é aquilo que podendo ser belo é belo, podendo ser racional é racional e podendo ser verdadeiro é verdadeiro. Por contraste o injusto é aquilo que podendo ser belo é feio, podendo ser racional é irracional e podendo ser verdadeiro é falso. Justiça é criar o justo tornando o feio que poderia ser belo em belo, o irracional que poderia ser racional em racional e/ou tornando o falso que poderia ser verdade em verdade.

Mas essas comparações não são somente feitas com aquilo que já existe. O ser humano é capaz de sonhar e imaginar. Elas são feitas também com aquilo que ele imaginou.

O processo de imaginar tira o mundo do objetivo e o recentraliza no subjetivo.

O feio pode ser belo se comparado com algo imaginário que seja ainda mais feio. O belo pode ser feio se comparado com algo imaginário que seja ainda mais belo. O racional pode se tornar irracional se comparado a algo imaginário mais racional. O irracional pode se tornar racional se contrastado com algo imaginário ainda mais irracional.

Até o domínio da natureza há pouco espaço para isso. Alguém pode até imaginar-se imortal, mas a morte provará seu equívoco representando o triunfo do objetivo sobre o subjetivo. Um leão selvagem pode ser imaginado manso, mas seu feroz ataque o provará feroz representando o domínio do objetivo sobre o subjetivo.

Porém, quando a capacidade humana impede qualquer leão de nos atacar, nós podemos imaginar e manter a imaginação de que o leão é manso ainda que ele seja em sua verdadeira natureza feroz. O objetivo perde força e o subjetivo alça voo livre.

Neste instante uma nova sociedade pode ser construída. A sociedade do prazer absoluto. Da mesma forma que a drogas podem subverter sistemas do corpo e ativar centrais de prazer existentes para outro propósito, o subjetivismo pode oferecer a sensação de realização última a uma sociedade.

Para essa construção a verdade não pode estar no objeto, mas no sujeito. O cisne é pato porque é do meu desejo que ele seja o que ele quer ser. E, se eu não o quero ver, o imagino e o idealizo belo. A bela imagem que eu vejo é do pato que não existe, imaginário. A bela imagem que eu vejo é surgida do cisne que eu não vejo. A verdade é o que se quer que ela seja. E porque há muitas vontades, há muitas verdades. Se o racional é aquilo que eu quero que ele seja há muitas racionalidades. Se o belo é aquilo que eu quero que ele seja, há muitas belezas – todas elas locais, nenhuma delas universal.

Cria-se uma cultura de adaptação do mundo ao ser que é contrária à natural adaptação do ser ao mundo.

O mundo vai ficando cada vez menos importante até desaparecer por traz do sonho.

O ser isolado se auto engana. É parte do mundo que o rodeia. Só não é nos seus sonhos. E sonha até o sonho se apagar com o fim do seu tempo de existência.

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