Por Renato Paulo Nicácio Pedrosa
Quanto mais corrupto é um Estado, mais leis ele precisa.
Historiador e Senador do Império Romano – Primeiro Século
Texto Original:
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. “Relatividade” da Competência Discricionária. Salvador: idpt, 2006. Disponível em:
RESENHA
1. Mello (2006) inicia comentando que não existem atos vinculados, nem atos discricionários. O ato em si é mera ferramenta da manifestação da vontade pública. Esta se baseia na apreciação de ordem estritamente discricionária ou vinculada. Sendo então emitida pelo administrador público. Todos os outros elementos do ato são vinculados.
2. Discricionariedade significaria então um leque de opções abertas pela legislação ao administrador público. No âmbito de suas competências estes poderiam então selecionar uma delas. Todavia estas opções seriam sempre limitadas. Discricionária ou vinculada seria então a competência de avaliação que o agente disporia diante do caso concreto.
3. Ainda assim, pensa o autor resenhado: sempre será restringida a avaliação discricionária, pois por pressuposto a discrição na administração pública é dada dentro da autorização legal, e não apenas fora de suas proibições. Assim sendo sempre teremos agentes vinculados às ordens legais.
4. Ou seja, ainda que possua certa liberdade, a própria forma como as leis são escritas já induz a uma infinita delimitação (vinculação) em muitas dimensões (quantitativos, determinantes, condicionantes, etc.).
5. A maior, mais importante e primordial de todas as restrições é a vinculação indissolúvel ao interesse público em contraponto ao interesse individual do agente, seja qual for.
6. A discricionariedade também seria relativa, pois se daria sempre dentro dos procedimentos e medidas (em sentido amplo). Desta forma conviveriam características vinculantes e discricionárias em quaisquer atos praticados, ainda que tenham natureza original discricionária.
7. Mesmo a discricionariedade prática; aquela advinda não de vontade legal indubitável e manifestamente racional e anterior à conduta, mas sim de inexatidão de termos; seria limitada. Estaria vinculada à interpretação próxima à costumeira (do senso comum), razoável e não-arbitrária. Tal avaliação nunca poderia ignorar os contextos tanto da situação concreta, quanto do ordenamento jurídico que a encerra. Existira então a discricionariedade, mas esta se dá em campo restrito, antes de esbarrar nos limites do inexato e ultrapasse a razoável zona de significado.
8. E reforça, diante dos fatos conceitos que a priori parecem abstratos ganham grande concretude. Exemplifica-as com pobreza e velhice (entre outros).
9. Neste ponto o autor salienta que há visões discordantes. Estas pensam ser dever do judiciário eliminar as imprecisões precisando-as. Todavia, outros acreditam que isto de fato representaria a tomada da administração pelo juiz. Já que ele faria nada além do que tomar pra si a discricionariedade que até então pertencia a outrem. Nestes últimos fia-se o entender de nossa referência.
10. Mello (2006) entende que ao juiz caberia então o papel de revisar intenções e métodos para manter o controle abrangente. Assim não só deveria verificar se haveria motivos pertinentes, mas se eles seriam suficientes e razoáveis ante o caso concreto. Baseando-se sobre preceitos científicos e em pessoal qualificado.
11. Por fim radicaliza o argumento afirmando que, se há discricionariedade abstrata onde atuaria o agente, esta se esvai completamente diante do caso concreto. Em que a cada situação haveria uma ótima atuação correspondente e única. Uma vez que vê o agente público apenas como meio para se atingir um fim conceitualmente abstrato, mas factualmente preciso do interesse público.
12. E diante de um exemplo concreto (infrações de regras de trânsito), demonstra que discricionariedade nada mais é do que espécie de vinculação em que, para se completar, exige o caso concreto. Enquanto argumenta que a realidade afunilaria ou mesmo eliminaria, como no caso citado, a discricionariedade.
13. Conclui então que a existência e extensão da discricionariedade dependem de uma combinação entre direito e fato. Doutrina que termos simplificadores tais quais “ato discricionário” e “ato vinculado” enganosamente escondem.
14. Neste ponto o autor em pauta descaracteriza o termo liberdade na administração pública enquanto aquilo que se entende na vida comum, para caracterizá-la em outra natureza. Definindo-a como dever de servir da melhor forma possível à sociedade que o cerca.
Vejo que em 1, o autor resenhado amplia a questão de forma a agregar a ela substância essencial à sua interpretação. Em 2 define com acerto como o Estado vê a questão da discricionariedade, sem discutir seu acerto, talvez por lhe escapar a necessidade de fins, vendo esta como uma questão de valores ou princípios. Em 3 age da mesma forma. Neste ponto esmiúça a máxima “A administração privada pode fazer tudo que a lei não proíbe, enquanto a administração pública só pode fazer aquilo que a lei lhe autoriza”. Neste ponto creio que exista uma maldosa, ainda que histórica, confusão de conceitos. Ora administração seria então o uso de força legítima do Estado contra a sociedade, ou contra seus membros (indivíduos)? Ora sendo assim é corretíssimo o entendimento de que (a administração pública) deve ser energeticamente limitada, a fim de preservar o bem estar social. Mas, se assim o é, não há de se falar em administração privada, pois inexiste o uso de força legítima do particular. Todavia se administração tiver um sentido técnico-científico, como muitas vezes se refere a doutrina como sendo gestão, é um imenso erro privá-la de capacidade de agir com a necessária desenvoltura e autonomia para dar conta dos imensos desafios sociais. Ora, se um juiz deve ter liberdade para proferir sua sentença baseando-se não só na lei, mas também na doutrina, por que o administrador (desde que preencha os requisitos legais para o exercício da profissão em nível superior) não deveria poder se basear com maior autonomia no conhecimento acumulado para administrar (marketing, recursos humanos, logística, estratégia, finanças, etc.)?
Em 4, 5, 6 e 7 define com correção as limitações pertinentes a atuações do poder público. Em 8 e 9 amplia o debate de limitações a discricionariedades práticas.
Em 10 coloca o juiz como guardião da boa administração, sem que haja nada que garanta que este será mais justo, ético ou moral, nem mesmo mais neutro que o administrador a ponto de ter capacidade de zelar, mais do que o gestor, pela boa administração.
Em 11 ignora que o mundo é complexo, as matrizes cognitivas variadas e que duas pessoas não compreendem fatos da mesma forma, nem mesmo os enxergam da mesma forma. E que isto resulta não de má fé, mas de simples estrutura psicológica diferente. Que fatos não são fatos além de construções simbólicas que são parte culturais e parte psicológicas.
No 12 não leva em consideração que aquilo que compreende como caso concreto, na verdade é uma a abstração cognitiva construída por ele. Muito diferente das variantes de interpretação possíveis dado a limitada capacidade de observação e cognição de quaisquer agentes que atuem em campo. Que construirão casos diferentes em cada interpretação, dado os insumos fáticos e visão de mundo de cada agente.
Em 13 reforça a idéia apresentada em 1.
Por fim, no 14, é curiosa sua distorção do conceito de liberdade. Após passar o texto defendendo o interesse público e o senso comum na interpretação razoável, refuta-os em uma de suas unidades de significância mais básicas atribuindo uma nova idéia ligada à palavra liberdade. E inadequadamente não discuite aqui, de nenhuma forma, que: o interesse público deve ser buscado por um motivo. Ou seja, o interesse público deve ser buscado para que todos tenham seu bem estar garantido.
O texto que trata de um tema tão preciso, é erudito ao tratar da forma, mas é simplista quando trata de conteúdo. Ignora a necessidade da discricionariedade. Toma como fato a boa fé de juízes em contraponto à fé duvidosa de administradores. Passa ao largo de objetivos de alguns aspectos da norma. E não se preocupa com a possibilidade de se gerar condutas desejáveis por instrumentos de incentivos individuais ao invés dos antigos controles processuais.
Deixa claro que discricionariedade sempre existirá em meio a vinculações. No entanto ignora o que me parece razoável: que também possamos supor um vice-versa, ou seja, que da mesma forma: vinculações ainda que muito estritas coexistam em ambientes inerentemente discricionários, na prática.
Mostra que a discricionariedade em um ato é um aspecto entre vários outros. E que não é uma dádiva, mas sim uma liberdade de agir em troco de um compromisso assumido com a coletividade. No que não poderia estar mais correto.
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